Um dos pontos mais importantes e menos
comentados do discurso do presidente Jair Bolsonaro Criador do Auxílio Brasil na Assembleia-Geral da
ONU foi esse: Impressionante, né? Mas
talvez mais impressionantes ainda sejam os dados divulgados pelo IBGE menos de
uma semana antes da fala do presidente: Mais de 10 milhões de brasileiros vivem
em situação de insegurança alimentar grave, segundo o órgão. Em outras palavras,
essa multidão, que inclui crianças, literalmente passa fome no Brasil. Mas
como afinal de contas o mesmo país que alimenta boa parte do planeta tem ao
mesmo tempo tantos milhões de famintos? Eu sou Ricardo Senra, repórter da BBC News Brasil
aqui em Londres, e neste vídeo eu explico três pontos-chave dessa triste
contradição. E também faço um raio-x da fome e da produção de alimentos no
Brasil. Para isso, eu conversei com alguns dos principais especialistas do país em
temas como acesso à alimentação adequada e fome. Já já eu falo mais sobre isso, mas
vamos começar pelo raio-x da fome com base na pesquisa de orçamentos
familiares, a POF, do IBGE, divulgada no dia 17 de setembro, e que se
refere aos anos de 2017 e 2018. Ela identificou que o total de pessoas com
alimentação em quantidade suficiente e satisfatória no Brasil é a mais baixa
dos últimos 15 anos. Vale lembrar que isso tudo acontece pouco depois de o país
finalmente a sair do Mapa da Fome das Nações Unidas, uma conquista que foi
aplaudida no mundo inteiro em 2014. Pois é, de acordo com uma nova pesquisa 10,3
milhões de brasileiros passavam fome durante o levantamento. Esse é um aumento
de 3 milhões de pessoas sem acesso normal a refeições em apenas cinco anos. Essa conta não inclui pessoas em situação de rua, o que tornaria esse cenário, segundo
especialistas, ainda mais dramático A fome no Brasil é registrada
principalmente em áreas rurais, outra contradição já que os alimentos são
produzidos nestas regiões. Desses mais de 10 milhões de brasileiros que passam
fome, segundo o IBGE, 7,7 milhões vivem em áreas urbanas, enquanto 2,6 milhões estão
em áreas rurais. O X da questão aqui é proporção. Esses dados mostram que 23,3% da população urbana têm fome, enquanto 40,1% da população
rural passam pela mesma situação. Ainda segundo a pesquisa, do total de
brasileiros que passavam fome no período investigado, 41,5% viviam na
região Nordeste, seguidos pelo Sudeste e pelo Norte. Aqui é preciso que a gente
entenda três conceitos importantes nessa discussão. O que são a insegurança
alimentar leve, a moderada e a grave A insegurança alimentar leve acontece quando
a família não tem certeza se vai conseguir ter acesso a alimentos no
futuro e quando a a comida na mesa já é ruim. Segundo o
IBGE: “Nesse contexto, os moradores assumem estratégias para manter uma
quantidade mínima de alimentos disponíveis.” Trocar um alimento por outro
que esteja mais barato, por exemplo. Já a insegurança moderada surge quando os
moradores têm uma quantidade restrita de alimentos. Ou seja, quando tem menos
comida na despensa do que o satisfatório Por fim, a insegurança grave aparece, nas
palavras IBGE, quando os moradores passaram por privação severa no consumo
de alimentos. É aí que se encaixa definição de fome. E se a gente
considerar esses 3 tipos de insegurança, a gente chega no problema do acesso à
alimentação de qualidade, que também é grave no Brasil. Segundo o IBGE, pelo
menos metade das crianças com menos de 5 anos viviam em casas com algum grau de
insegurança alimentar. Isso equivale a 6,5 milhões de crianças. Agora, se a
referência for a insegurança grave, a fome de fato, 5,1% das crianças
com menos de 5 anos e 7,3% das pessoas entre 5 e 17 anos
vivem nessa condição no Brasil. É muita gente! Isso me traz
para o segundo ponto deste vídeo: o raio-x da produção de alimentos no Brasil. Diferentemente
do que o presidente Jair Bolsonaro afirmou, o Brasil não desponta como o
principal produtor de alimentos do planeta. Hoje é o terceiro, atrás só da
China e dos Estados Unidos, segundo a Associação Brasileira da Indústria de
Alimentos, que é o maior representante da indústria de alimentação do país, o
Brasil exportou comida para mais de 180 países no último ano. E essas exportações
movimentaram US$ 34,1 bilhões no ano passado. A maior parte US$ 36,8 bilhões foi
para a Ásia, principalmente na China. Em seguida, vêm a União Europeia, com 18,8% das exportações, e Oriente Médio, com 14,3%. A associação traz
informações interessantes: a gente é o segundo exportador mundial de alimentos
industrializados em volume e o quinto em valor. Somos o primeiro produtor e
exportador de suco de laranja em todo mundo, o segundo produtor e o primeiro
exportador mundial de açúcar. O segundo produtor e o primeiro exportador
mundial de carne bovina e idem para carne de aves. A gente também é o segundo
exportador mundial de café solúvel e essa me surpreendeu! O Brasil é o segundo
produtor mundial de bombons e doces Pois é, mas aqui a gente vai para o coração
desse vídeo: por que produzindo tanta comida e tendo tanta comida para
exportar nós temos tantos brasileiros com fome. O primeiro ponto aqui é quem
alimenta quem. É importante diferenciar o papel do agronegócio do dos pequenos
produtores familiares na produção de alimentos no Brasil. Talvez você se
surpreenda de novo. De acordo com o último censo agropecuário do IBGE,
70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros vêm da
agricultura familiar. A gente está falando aqui de terras pequenas, administradas
por pessoas da mesma família ou de famílias próximas, que produzem para
própria alimentação e vendem o excedente Agricultura familiar é diferente das
grandes monoculturas de soja ou de café ou daqueles grandes pastos da pecuária e
agronegócio. Ela produz uma diversidade enorme de alimentos: de mandioca e
hortaliças a milho, leite e frutas. E é graças a ela que o nosso
prato pode ser farto e colorido, como recomendam os nutricionistas. Já o famoso
agronegócio, que corresponde aos grandes produtores, é responsável por boa parte
do PIB brasileiro, tem representantes em vários níveis da política, ele é
principalmente destinado à exportação Eu falei sobre esse assunto com o Daniel
Balaban, que é o diretor do Centro de Excelência contra a Fome do Programa
Mundial de Alimentos da ONU no Brasil Ele me disse o seguinte: “O agronegócio,
por isso que o nome é negócio, né? Ele vai aonde pagam mai, aonde ele mais ganha, tem
mais lucro. Então, como um dólar a R$ 5,50, um dólar
supervalorizado, fez com que o produto brasileiro ficasse muito barato para
exportação. Ele prefere exportar, no qual ele vai conseguir a
cada dólar que ele receber está recebendo R$ 5,50 do que botar aqui no
Brasil a R$ 5,50 e, claro, perante os preços básicos dos
alimentos aqui, entendeu? Vamos ver um pacote de 1 kg de arroz, né? Como é o caso
do arroz que subiu demais, então, ele vai preferir sempre exportar, enquanto ele
tiver mercado lá fora. Tanto é que o agronegócio brasileiro ele exporta tudo
que tem e só o que não tiver mercado lá fora é que ele bota aqui dentro.” Já o Kiko
Afonso, que é diretor-executivo da Ação da Cidadania, aquela ONG fundada pelo
Betinho, para combater a fome e a miséria no Brasil, diz que a política de
agricultura brasileira se orienta para as exportações. O que nas palavras dele
pode ser bom para balança econômica, mas péssimo para consumo local,
Principalmente para as populações mais vulneráveis. “Olha só, então você soma dois
grandes fatores, né? Uma política de governo que olha para o agronegócio para
exportação em detrimento do pequeno produtor,
o que encarece o alimento. E uma segunda vertente, onde você tem uma
desigualdade social absurda, onde a grande maioria da população vive com um
salário muito abaixo de um média aceitável para se sobreviver.” E aqui a gente entra em
mais um ponto importante dessa história: a atenção destinada à agricultura familiar,
aquela que põe comida na mesa do brasileiro, como a gente viu, tem encolhido.
“Por exemplo, os pequenos agricultores familiares eles tinham o PAA,
Programa de Aquisição de Alimentos, né? Este programa chegou a ter orçamento
bilionário, né? Um R$ 1,5 bilhão por ano Hoje, não chega a R$ 100 milhões. O
Pronaf, que é o Programa de Apoio ao Agricultor Familiar, né. Diminuiu bastante
o número de empréstimos para eles, que tinham com juro subsidiado e outros
programas, por exemplo, de captação de água da chuva. O Brasil também tinha programa de cisternas que apoiava. Isso também caiu drasticamente. Essa população de campo
ela é muito vulnerável. Então, ela precisa que esteja sempre sendo incentivada e
sendo apoiada por políticas públicas do governo.” “E estamos falando de muita gente
que pode morrer por causa de fome nos próximos meses no Brasil. Nosso fundador, o
Betinho, sempre dizia isso: que a fome é uma das piores senão a pior indignidade
que o ser humano pode ter.” E eu aproveito esse gancho para entrar no terceiro
ponto. Chama muita atenção o fato de que a fome no Brasil esteja concentrada nas
regiões rurais, como a gente disse, aquelas onde se produz a comida. O que
dizem os especialistas sobre isso? Eu também falei com o economista Marcelo
Neri, que é professor da FGV e ex-presidente do Ipea e ex-ministro-chefe
da secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República entre
2013/2015. Ele me disse que “o morador do campo é o mais pobre, é o que produz alimentos mas não ganha o suficiente para comprá-los.” Em
2019, segundo o professor 53% dos 20% mais pobres do
Brasil e 10% dos 20% mais ricos do Brasil declaravam
que faltava dinheiro para alimentação Já no resto do mundo, segundo ele, os números
eram 48% nos 20% mais pobres, e 21% nos 20% mais ricos. Ou seja, ele explica, os nossos pobres têm hoje mais insegurança
alimentar do que no resto do mundo, enquanto os nossos mais ricos têm menos.
É a famosa “desigualdade tupiniquim”, ele diz. Os outros especialistas
concordam com ele. “O Brasil teve muitas políticas de ajuda aos pequenos
agricultores familiares no passado, e essas políticas perderam força nos
últimos governos. Já no final do Governo da Dilma, Temer e agora. Então, isso faz
com que, além de diminuírem a produção, eles não produzirem e acaba tendo fome
no campo.” “E elas acabam tendo que migrar ou para
centros urbanos para morar em favelas e regiões super pobres, em condições super
difíceis, ou elas têm que se adequar a trabalhar para esses grandes
agronegócios.” Agora, uma pergunta que muitos de vocês podem estar se fazendo é a
seguinte: como é que a pandemia do novo coronavírus afeta o cenário da fome no
Brasil. O Daniel Balaban, do Centro de Excelência contra a Fome do Programa
Mundial de Alimentos da ONU, responde essa pergunta: “É triste dizer isso, mas
o Brasil tem uma renda, uma renda média de R$ 480. De repente, quando 65
milhões de pessoas receberam R$ 600 na sua conta, o Brasil diminuiu
incrivelmente, durante este período dos recursos emergenciais, o número de
pessoas abaixo da linha da pobreza.” De fato, uma pesquisa da FGV divulgada em
julho mostrou que a faixa da população que vive em extrema pobreza caiu de 4,2
para 3,3% da população É a menor taxa dos
últimos 40 anos no Brasil. O conceito de extrema pobreza se refere àquelas
pessoas que vivem com menos de um US$ 1,90 por dia ou R$ 154 mensais.
Mas então isso é motivo para comemorar? “Se a gente já tinha antes esses mais de
80 milhões de brasileiros em algum grau de insegurança alimentar, seja leve,
moderado ou grave, né? Esse número certamente vai aumentar. A recessão e a
crise claramente não são questões que vão ser resolvidos no curto prazo. O
desemprego já é quase recorde no Brasil e a gente vê claramente que o auxílio
emergencial é insustentável no modelo atual.” O diretor da ONU concorda: “O
problema todo é que quando acabarem esses recursos emergenciais volta-se ao
problema anterior, porque o problema anterior era estrutural, e esse recurso é
emergencial.” Já o Marcelo Neri, da FGV, me disse o seguinte sobre a pandemia no Brasil: “Segundo o nosso último levantamento, apesar da queda da
renda do trabalho recorde de 20,5% na pandemia, cerca de 13,1 milhões
de pessoas saíram da pobreza em plena pandemia.” O que explica esse paradoxo, ele diz é a generosa entre aspas concessão do auxílio emergencial que
chegou a 67 milhões de brasileiros ao custo de R$ 322 bilhões durante
2020. O problema é que o auxílio termina em 31 de dezembro. Ele diz: “E aí não são só os ex-pobres que vão voltar à condição inicial. Eles vão ter a companhia de
novos pobres deslocados pela pandemia.” Eu também quis saber se os números sobre a
fome no Brasil divulgados pelo IBGE surpreenderam esses especialistas. Dá uma
olhada nas respostas: “Infelizmente, para a Ação da Cidadania, não surpreendem,
é porque a gente sabia dessa da dimensão, né, do do que vinha por aí. Sabia da
dimensão das famílias que estavam na ponta nos pedindo alimento, ao invés de
educação, saúde etc. Quando a pessoa abre mão desses outros direitos para pedir
comida, é porque a situação está realmente muito grave.” O Marcelo Neri trouxe novos
dados e disse que os resultados da pesquisa do IBGE desafiam aqueles que
acreditam que a fome é coisa do passado no Brasil. “Antes que ataquem o
mensageiro, observamos o mesmo drama em evidências internacionais sobre o Brasil.”
A proporção daqueles que não tem dinheiro para comprar alimentos cai de
20% até 18% e depois sobe para 30% em 2017/2018, o que é consistente em termos de período e prazos com a última
pesquisa do IBGE. Esse mesmo patamar de 30% é mantido em 2019. A
gente aqui na BBC News Brasil vai continuar acompanhando os números e
principalmente as histórias reais de milhões de brasileiros e brasileiros que
estão passando fome nesse momento. Obrigado por nos seguir
até aqui. Eu espero que este vídeo tenha ajudado vocês a entenderem, a conhecerem
mais sobre esse triste cenário e logo logo a gente volta com mais vídeos. Até
lá!

4.8/5 - (177 votes)